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Rondônia, quarta, 01 de maio de 2024.

Exame

Câmara aprova marco temporal sobre demarcação de terras indígenas


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A Câmara aprovou nesta terça-feira o projeto de lei que estabelece um marco temporal para terras indígenas. O texto agora vai para o Senado. O projeto teve intensa mobilização contrária de ambientalistas e defensores dos direitos dos indígenas, que chegaram a promover bloqueios em estradas e mobilizaram artistas internacionais contra a medida.

A votação representa mais um sinal de fragilidade da base do governo. O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), orientou contra o texto durante a votação e disse que o Poder Executivo queria adiar a discussão, sinalizando um acordo para isso. Momentos antes de votar, no entanto, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse que o governo não deu garantia de que iria cumprir o acordo.

A iniciativa define o ano de 1988, quando a Constituição foi promulgada, como marco para demarcação de terras indígenas. Opositores do projeto avaliam que usar o ano como marco seria retroceder em relação às terras conquistadas.

O que está em jogo:

  • Data: O marco temporal estabelece que povos indígenas têm direito apenas às terras que já ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.
  • Ruralistas: Defensores da proposta dizem que medida traz segurança jurídica ao campo, evitando que proprietários de terras tenha suas terras reinvindicadas futuramente.
  • Oposição: Críticos à proposta, por sua vez, argumentam que ao estabelecer uma data específica a Câmara ignora o histórico de perseguição aos indígenas, que foram dizimados e expulso de suas terras.
  • Demarcação: Segundo especialistas, a aprovação no projeto, caso passe também pelo Senado e seja sancionado, suspende processos de demarcações em análise e coloca em risco áreas já demarcadas, que poderão ser contestadas na Justiça.
  • STF: Votação na Câmara tenta se antecipar a julgamento no STF na semana que vem, que analisa a questão com base em uma disputa de terra em Santa Catarina.

Defensores do projeto, por sua vez, dizem que o texto dá “segurança jurídica”, termo já usado inclusive pelo ministro da Agricultura, Carlos Fávaro. O governo está dividido sobre o tema, enquanto a base mais ligada à esquerda é contra o projeto, como PT, PDT, PCdoB e PSOL, uma ala de governistas do PSD, PSB e MDB são a favor da proposta.

A previsão é que, embora a Câmara tenha aprovado o projeto nesta terça-feira, a proposta deve levar algum tempo ainda para avançar no Senado. Segundo o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o texto deve passar por comissões da Casa antes de ir ao plenário. Caso o projeto seja aprovado também pelos senadores, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda precisará sancioná-lo.

A divisão na base ficou clara na votação. O deputado Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE), vice-líder da maioria, orientou a favor da proposta, o que gerou a reação contrária de deputados como Rogério Correia (PT-MG), Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e Orlando Silva (PCdoB-SP). Os parlamentares entoaram gritos durante a votação e o líder da maioria, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), precisou ser chamado às pressas para orientar. Atendendo ao pedidos dos parlamentares de esquerda, Aguinaldo liberou o bloco da maioria.

Além do marco temporal, o projeto também abre margem para contato com povos isolados caso haja “utilidade pública”, além de dar margem para garimpo, construção de estradas e de usinas hidrelétricas em terras indígenas.

A aprovação foi articulada por Lira e por líderes partidários próximos a ele. O projeto é uma reação a um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa um recurso para impedir o marco temporal, estabelecido por entendimento anterior do próprio tribunal.

O julgamento está marcado para semana que vem e, ao aprovar o texto, Câmara tenta se antecipar para evitar que o Supremo regulamente o assunto.

Para impedir a votação de hoje, o governo tentou convencer o STF a adiar o julgamento sobre o tema marcado para semana que vem. Apesar disso, o presidente da Câmara afirmou que nenhum representante do governo o atualizou sobre o sucesso ou não do acordo.

A votação é mais uma de uma série de derrotas sofridas pelo Palácio do Planalto no Congresso. Na semana passada, parlamentares decidiram rever a configuração da Esplanada dos Ministérios planejada pelo governo.

Entre as mudanças estão o esvaziamento do Ministério do Meio Ambiente, comandado por Marina Silva, além também da transferência de competências importantes, como políticas de preço, do ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, para o ministro da Agricultura. O relatório do deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL) sobre o assunto deve ser votado ainda hoje pela Câmara e amanhã pelo Senado.

A Câmara também já derrubou um decreto sobre saneamento do governo. O tema está sob análise do Senado.

A tese do marco temporal se baseia em uma interpretação sobre o artigo 231 da Carta, que diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Na visão dos defensores da proposta, ao utilizar o verbo no presente — “ocupam” —, a Constituição prevê se tratar dos territórios ocupados naquela data. Deputados favoráveis argumentam, ainda, que estabelecer o marco temporal para demarcações é uma forma de garantir segurança jurídica a proprietários de terras no país, que poderiam ser desapropriados caso, futuramente, suas terras fossem reinvidicadas como território indígena.

“É inaceitável que ainda prevaleça a insegurança jurídica e que pessoas de má-fé se utilizem de autodeclarações como indígena para tomar de maneira espúria a propriedade alheia, constituída na forma da lei, de boa-fé e de acordo com o que estabelece a Constituição brasileira”, argumenta o relator do projeto, deputado Arthur Maia (União Brasil-BA).

Ambientalista e defensores da causa indígena, por outro lado, citam o parágrafo 1º do mesmo artigo da Constituição como argumento contrários ao marco temporal.

“São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, diz o trecho.

Os contrários ao projeto dizem que, ao estabelecer a data de 1988, a Câmara ignora todo o histórico de perseguição contra povos indígenas, em que muitas etnias precisaram deixar seus territórios originários para evitar serem dizimados. Assim, não ocupavam o local a que teriam direito na época.

Na prática, processos de demarcação em análise pelo governo poderão ser suspensos. Além disso, segundo especialistas, territórios já homologados poderão ser questionados judicialmente levando em conta o novo entendimento.

Atualmente, constam 764 áreas nos registros da Fundação Nacional do Indio (Funai), dentre as quais 483 áreas se tratam de locais cujos processos de demarcação se encontram homologados/regularizados e 281 locais se encontram sob análise. Essas áreas representam 13,75% do território brasileiro, estando localizadas em todos os biomas, sobretudo na Amazônia Legal.

O Brasil tem 1.652.876 pessoas indígenas, de acordo com dados parciais do Censo de 2022, divulgados no início de abril pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O número preliminar ainda pode aumentar na divulgação dos resultados definitivos da pesquisa. Na comparação com o Censo de 2010, quando o total era de cerca de 870 mil indígenas, o aumento é de 84%. No total, eles estavam distribuídos em 305 etnias, que falavam 274 línguas diferentes. Este número ainda sofrerá atualização com o novo levantamento nacional.

Garimpo e índios isolados

Além de estabelecer um marco temporal para a demarcação das terras indígenas no país, o projeto aprovado pela Câmara inclui outros artigos considerados como retrocesso por especialistas. O texto prevê que os territórios possam ser explorados economicamente e inclui a possibilidade de contato com povos isolados.

Pelo texto do relator, Arthur Maia, é possível o contato com povos indígenas isolados, que nunca tiveram interação com o resto da sociedade, caso haja um “utilidade pública”. O texto não detalha o que seria interesse público.

“No caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito a suas liberdades e meios tradicionais de vida, devendo ser ao máximo evitado o contato, salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública”, diz trecho do projeto.

A ideia remonta uma prática adotada na década de 1970, período da ditadura, quando havia um incentivo a encontrar novas tribos. No entanto, ainda durante o governo militar, houve recuo e o país passou a seguir a “política de não contato”, formulada pelo indigenista Sidney Possuelo, como forma de preservar essas comunidades tradicionais. Na época, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) criou um departamento próprio para povos isolados.

A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, se pronunciou hoje sobre o trecho e classificou o projeto de “genocídio legislado”.

— O PL 490 representa o genocídio legislado porque vai afetar diretamente e autoriza terceiros em territórios onde vivem pessoas, povos que ainda não tiveram nenhum contato com a socidade. Cabe a nós a proteção dos territórios onde vivem esses povos — disse a ministra.

Na contramão da ministra e evidenciando a divisão no governo, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, defende o marco temporal sob o argumento que “traz segurança jurídica dentro do campo”.

O texto patrocinado pela bancada agropecuária prevê ainda a “expansão da malha viária”, “exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico” e “instalação de postos militares e demais intervenções militares” em áreas protegidas. Segundo a proposta, as intervenções podem ser implementadas “independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”.

“O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional”, diz trecho do projeto. “A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”, continua.

Na prática, na visão de ambientalistas, a medida possibilita a autorização para atividades como garimpo e atividades agropecuárias nos territórios hoje protegidos.

Supremo e Senado

O projeto, apresentado há mais de 15 anos na Câmara, teve sua discussão levada ao plenário após uma articulação de deputados ruralistas para aprovar a sua urgência na semana passada. A votação é uma reação a um julgamento marcado para o dia 7 pelo Supremo Tribunal Federal, que analisa um recurso para impedir o marco temporal em relação à demarcação da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina. A Corte, porém, já afirmou que a decisão nesse caso valerá para todas as disputas fundiárias nos tribunais do país.

A análise no STF começou em agosto de 2021, mas foi interrompida no mês seguinte por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. O processo já foi liberado por Moraes, mas não voltou a ser julgado. No momento, o placar do julgamento registra um empate, com um voto a favor da tese do marco temporal (dado por Nunes Marques) e outro contrário (de Edson Fachin, o relator).

Em entrevista ao GLOBO, o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), disse que a votação na Câmara não atropela o STF. — O STF só fará esse julgamento pelo fato de o Congresso não ter se posicionado ainda sobre o tema. O Legislativo precisa legislar antes do STF. Queremos, democraticamente, debater isso no plenário. Seria apenas um projeto que referenda a Constituição. É mais uma preocupação jurídica sobre o direito à propriedade — afirmou Lupion.

Fonte: Revista Exame

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