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Rondônia, sexta, 26 de abril de 2024.

Exame

Malaca, uma cidade multicultural ameaçada


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Malaca, Malásia – Hoje em dia, a força mais ágil na antiga cidade portuguesa de Malaca é o suor que escorre pelo corpo dos pescadores.

Em um calor infernal – é sempre muito quente em Malaca –, um grupo de homens sem camisa estava espalhado à sombra de uma árvore, na esperança de pegar pelo menos uma brisa do mar, mas o vento não queria cooperar. Alguns barquinhos ali perto nem remos tinham, mas não fazia diferença porque nem os peixes estavam mordendo.

O lugar nem sempre foi tão letárgico; de fato, no século XVI, este porto no Estreito de Malaca estava estrategicamente posicionado no centro do mundo, ligando o Oceano Pacífico ao Índico no auge da onda comercial global de especiarias.

Séculos antes de a fusão asiática se tornar modinha culinária, Malaca desenvolvera um patrimônio multicultural complexo todo próprio, influenciado por chineses, árabes, indianos, persas, turcos, portugueses, holandeses e siameses, além dos próprios malaios, que vendiam em suas lojas, comiam em suas barraquinhas e se apaixonavam em suas ruas.

Enquanto o mundo se retrai e se recolhe por causa da pandemia e questiona os méritos da globalização, Malaca é um lembrete de que esse intercâmbio transoceânico tem um longo histórico que encerra promessa e perigo.

E o destino da cidade talvez sirva de alerta para o fato de que a prosperidade que a globalização concede a alguns pode ser efêmera e instável: uma cidade que já foi centro mundial pode virar um fim de mundo, e uma cultura que já foi rica pode encarar a extinção.

O porto de Malaca, que já foi um dos mais ricos do mundo, viu seu movimento estagnar, e a cidade se tornou um rodapé histórico. As especiarias que estimularam a era das explorações – noz-moscada, cravo e canela – hoje ficam guardadas em armários empoeirados, tendo deixado há muito de ser preciosidades.

E, sim, também teve epidemia – uma peste que enfraqueceu o controle dos portugueses sobre a cidade, abrindo caminho para os holandeses e depois os britânicos, que deram preferência a outros entrepostos e deixaram Malaca definhar aos poucos.

As evidências de seu passado de diversidade complexa permanecem nos edifícios históricos, verdadeiros ímãs de turistas que andam de lá para cá nos triciclos enfeitados e iluminados.

Cafés à beira do rio em Malaca, MalásiaAdam Dean/The New York Times
O que restou do forte português de Malaca, Malásia, do século 16Adam Dean/The New York Times

Naquela que é conhecida como Harmony Street, há um templo budista chinês erguido no século XVII, um templo hindu do século XVIII e uma das mesquitas mais antigas da Malásia, que exibe beirais chineses, azulejos portugueses, colunas coríntias e um candelabro vitoriano.

Mas um legado da diversidade cultural de Malaca está lutando para sobreviver no século XXI: sua população nativa de eurasianos, conhecidos como cristangs, em referência à sua fé católica.

Eles prosperaram durante a era de ouro do porto, como funcionários públicos, pescadores, comerciantes e músicos, mas sua cultura enfrenta uma pressão enorme da Malásia atual, que está se desfazendo ao longo das linhas de falha étnicas.

Seu dialeto, crioulo português, está ameaçado de extinção; as igrejas católicas estão se esvaziando. A lei nacional exige que os membros da comunidade que se casarem com alguém da etnia malaia, majoritária, se convertam ao islamismo.

“Nossa comunidade uniu o Ocidente e o Oriente, mas, agora que o mundo supostamente está globalizado, estamos correndo o risco de desaparecer”, resume Darian Tan, de 35 anos, marqueteiro digital e guitarrista de uma banda só de eurasianos.

No fim de fevereiro, o único governo verdadeiramente multiétnico da Malásia desde a independência caiu, depois de apenas dois anos no poder. Uma coalizão dominada por nacionalistas malaios assumiu, deixando de lado chineses e indianos reformistas. Um membro minoritário da nova liderança é um partido que quer que o país se torne um Estado islâmico.

Para a população multiétnica de Malaca, a volta à política populista malaia vem gerando ansiedade – e são muitos os malaios chineses que já emigraram, uma vez que as cotas raciais limitam seu acesso às universidades e ao funcionalismo. Muitos cristangs hoje vivem na Austrália, no Canadá e em Singapura; cerca de 1.200 permanecem no bairro português, região que atrai poucos turistas.

A orla ali deve se tornar palco de um projeto de verba chinesa chamado Melaka Gateway, que segundo os críticos está sendo usado para reforçar o controle de Pequim sobre um posto marítimo essencial no âmbito geopolítico.

Toda a areia removida por causa das obras fez desaparecer as amêijoas e interrompeu os padrões migratórios da chaputa e do camarão – um golpe duríssimo para os pescadores cristang, cujos números já são metade do que eram há vinte ou trinta anos.

“Não somos contra o progresso, mas sim contra algo que está destruindo uma comunidade única de mais de 500 anos”, acusa Martin Theseira, representante local que costumava pescar e preparar os próprios frutos do mar em conserva.

Perto da entrada da Praça Portuguesa há uma estátua do Cristo Redentor igualzinha à do Rio de Janeiro, só que durante anos ficou sem cabeça porque os muçulmanos mais radicais a consideravam uma perversão idólatra. Foi recuperada em 2017, mas ainda não tem a documentação em dia, e os organizadores da comunidade cristang temem que seja destruída se as autoridades locais cederem aos conservadores religiosos.

Atrás da árvore onde se reúnem os homens da comunidade há um prédio do qual hoje só sobraram as paredes externas, mas que foi originalmente concebido como o Hotel Lisboa, para receber os turistas que chegariam ali atraídos pelos muitos festivais locais. Só que a gerência foi parar nas mãos malaias, que reprovam o consumo de bebidas alcoólicas e desencorajam casais não casados a fazer reservas.

Obra chinesa em Malaca, Malásia(Adam Dean/The New York Times
Malaca, MalásiaAdam Dean/The New York Times

“Adoramos nossos festivais, mas que graça tem se não tiver nem vinho nem dança?”, questiona Theseira, o político local.

A língua cristang combina uma versão arcaica do português com a gramática malaia, e é ensinada no Facebook por Philomena Singho por meio de vídeos que ela grava na sala de sua casa, no bairro português, com direito até a crucifixo na parede. Ela é fluente em papiá cristang, mas reconhece que apenas duas ou três mil pessoas ainda falam o idioma com desenvoltura, e um número ainda menor o ensina aos filhos. “Faço o que posso, mas tenho medo de que desapareça já na próxima geração”, diz.

Singho conta que tem herança portuguesa, armênia, holandesa, malaia e cingalesa, além de mais uma ou duas etnias. “Somos uma mistura boa”, brinca.

Em Goa, primeira possessão territorial portuguesa na Ásia, bem como em outros assentamentos, como Macau, no litoral chinês, as comunidades eurasianas prosperam. Sua culinária foi enriquecida pelas misturas coloniais, de modo que o frango apimentado de Moçambique, outra colônia portuguesa, evoluiu e se transformou em um prato popular temperado com molho de soja.

Em Malaca, um guisado ao vinho que era muito popular em Lisboa virou o “curry do diabo”, um refogado ardidíssimo feito tradicionalmente com carnes como peru, pato e pernil, além de vinagre.

Atualmente na Malásia, os cristangs são mais conhecidos por seus cozidos e docinhos, e pelos violonistas que tocam por dinheiro – ou seja, uma comunidade que já foi tão vibrante hoje se resume a clichês culturais. “Se quisermos sobreviver aos próximos 500 anos, não podemos só ficar cantando, dançando e comendo”, reconhece Theseira.

Fonte: Revista Exame

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