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Rondônia, sexta, 29 de março de 2024.

Exame

As cidades vão encolher? Covid-19 é uma chance de reinventar a metrópole


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A reabertura de Nova York já completou um mês e meio, mas caminhar pelas ruas da cidade ainda dá uma estranha sensação de inquietude. Os engarrafamentos perenes sumiram. A trilha sonora exasperante das buzinas está mais quieta. Sobra espaço nas calçadas de Midtown, normalmente dispu­tadas por nova-iorquinos apressados e turistas contemplativos. Peças e musicais só retornarão aos teatros da Broadway em 2021. Muitos restaurantes seguem fechados, e ninguém sabe quais vão reabrir quando os salões internos puderem voltar a operar. Num sábado recente, a região do Greenwich Village, uma das mais agitadas da noite de Manhattan, estava às moscas. Alguns poucos bares serviam clientes na calçada, mas nada parecido com a energia boêmia habitual do bairro. A cidade que não dorme parece estar num estado de hibernação.

Grandes cidades já sobreviveram a guerras, pandemias e catástrofes naturais muito mais devastadoras do que a atual. Ninguém duvida que o dinamismo e a energia voltarão a Londres, Paris, São Paulo ou Xangai. Mas essas metrópoles poderão emergir diferentes da crise atual. A natureza do trabalho mudou. A urgência da pandemia tirou da inércia muitas empresas que resistiam ao teletrabalho. As horas perdidas durante o trajeto para o escritório viraram tempo extra para dedicar à família. E as malhas de transporte coletivo que sempre foram um sinal de sucesso nas grandes cidades hoje estão abandonadas pelos passageiros e sangram dinheiro.

O Twitter anunciou que seus funcionários poderão trabalhar de casa para sempre se quiserem. A Fujitsu vai cortar pela metade o espaço físico que ocupa no Japão. Os escritórios de Facebook e Google, que juntos empregam mais de 150.000 pessoas no mundo, ficarão vazios até o fim no ano, no mínimo. A densidade­ de talentos, essencial para o sucesso das metrópoles e o atrativo que levava muita gente a se espremer em apartamentos minúsculos e vagões de metrô lotados, agora é um repelente.

Que mudanças práticas podemos esperar das cidades é um tema que divide os estudiosos. Richard Florida, da Universidade de Toronto, diz não estar “nem um pouco preocupado” com o futuro de uma megalópole como Nova York. Na opinião de Florida, a crise ­atual apenas vai acelerar um movimento cíclico que sempre se observa nas grandes cidades: famílias com filhos partem para o subúrbio, em busca de mais espaço e qualidade de vida (leia entrevista abaixo). Talvez agora elas também sejam acompanhadas por mais idosos. Porém, esse êxodo será compensado por uma nova leva de jovens profissionais.

Edward Glaeser, professor na Universidade Harvard e uma das maiores autoridades do mundo no tema das metrópoles, tem uma visão um pouco mais nuançada. A primeira pergunta que ele faz é se estamos diante de um evento único ou se haverá novas crises sanitárias. “Historicamente, sempre houve um grande fator negativo da vida nas cidades, e esse fator foram as pandemias”, afirma Glaeser. “Tivemos um século abençoado. Com exceção da aids, que não foi uma ameaça existencial para as grandes cidades.” Mesmo no melhor dos cenários — caso se confirme a eficácia das vacinas —, o impacto será sentido por meia década. Segundo um estudo recente publicado por Glae­ser e colegas, a expectativa é que 40% dos funcionários que hoje estão em casa continuarão fazendo teletrabalho.

As consequências desse rearranjo para o setor imobiliário são insondáveis. Nas duas últimas recessões, o mercado de imóveis comerciais se recuperou rapidamente. Desde 2001, cinco dos setores que mais empregam trabalhadores de escritório em Manhattan cresceram de 1,06 milhão para 1,36 milhão de empregados — um aumento de 28%. “No longo prazo, quando a economia se recuperar e voltar a crescer, Manhattan ainda será única”, escreveu num artigo recente Eric Kober, ex-diretor de planejamento econômico e de infraestrutura da prefeitura. A cidade vai voltar mais forte e “empregará mais gente do que nunca”, na opinião de Kober.

Ciclovia em Paris: mais espaço para bikes busca desestimular o uso o transporte de massa na pandemia | Adnan Farzat/NurPhoto/Getty ImagesReprodução/

Mas os fundos especializados em imóveis comerciais contam outra história, pelo menos por enquanto. Quatro deles, compostos de companhias donas de edifícios históricos — como o Empire State ­— e promissores ­— como a torre One Vanderbilt, que terá 67 andares e será o quarto maior arranha-céu de Manhattan —, ainda não recuperaram nem um quarto do valor de mercado perdido em março. O complexo misto Hudson Yards, projeto de 25 bilhões de dólares com escritórios e apartamentos de luxo no oeste da ilha inaugurado há pouco mais de um ano, está numa encruzilhada, como diz Eliot Spitzer, ex-governador de Nova York e hoje envolvido no desenvolvimento do Hudson Yards. “Será que a pandemia afeta o desejo das pessoas de estar na cidade? Os inquilinos-âncora vão embora?”, ­afirmou ele numa entrevista recente.

Congestionamento na 10ª Avenida, em Nova York, em julho de 2019: o teletrabalho pode aliviar os gargalos do trânsito | Richard Levine/Agefotostock/AGB Photo LibraryReprodução/

Essa incerteza tem a ver com uma ideia difusa: a sensação de segurança. As regras estritas impostas pelo governo do estado permitiram uma recuperação formidável da cidade mais atingida pelo coronavírus. Em Nova York foram registrados 223.000 casos e 22.750 mortes até o momento. Mas, enquanto a pandemia continua se espalhando no restante dos Estados Unidos, a situação ns cidade está sob controle por ora. Depois de um pico de 11.500 casos num único dia de abril, nas últimas semanas o número vem se mantendo estável. Em 12 de julho, a cidade registrou 679 novos casos e, pela primeira vez em quatro meses, nenhuma morte em decorrência da covid-19.

O trabalho nos escritórios foi liberado em meados de junho (mediante adaptações, como distância mínima entre as mesas), parte da segunda fase da reabertura da cidade. Mas uma pesquisa recente do FundFire, publicação do Financial Times especializada em fundos de investimento, indica que somente 7% dos funcionários desse setor sentem-se seguros o bastante para voltar à rotina de antes. Nos mercados financeiro e de mídia, cruciais para a economia nova-iorquina, as medidas até agora têm sido tentativas. Grande parte das companhias e instituições financeiras decidiu adiar decisões até setembro, quando terminam as férias de verão no Hemisfério Norte. O JP Morgan Chase, um dos maiores inquilinos da cidade, não estabeleceu uma data de retorno. O suíço UBS espera que até um terço de seus 70.000 funcionários mundo afora trabalhe em casa daqui em diante.

O medo do contágio não se limita ao lugar de trabalho. Nova York tem uma das maiores redes de metrô do mundo. No auge da pandemia, a quanti­dade de passageiros transportados caiu 90% — e o número ainda segue muito abaixo da média histórica. A Metropolitan Transportation Authority, estatal responsável por ônibus, metrô e trens regionais, já vinha mal das pernas antes da crise. Com um buraco no orçamento de 10 bilhões de dólares nos próximos dois anos, os planos de investimentos em infraestrutura foram suspensos indefinidamente.

“As pessoas consideram os ônibus mais seguros do que o metrô, o que faz sentido”, diz Joseph Cutrufo, da Transportation Alternatives, uma ONG com quase 50 anos de história cuja missão é defender meios de transporte alternativos aos carros. “Mas a prefeitura não faz nada a respeito. Não vamos construir novas linhas de metrô tão cedo, então os ônibus têm de andar mais rápido.” A primeira via expressa para ônibus, inaugurada em outubro do ano passado na Rua 14, diminuiu a duração das viagens em 36% e foi responsável por um aumento de 25% no número de passageiros durante o rush matinal. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, prometeu implementar mais 30 quilômetros de faixas expressas — mas os críticos dizem que é pouco. “Estamos falando de uma solução simples e barata: tinta no asfalto e sinalização”, diz Cutrufo.

Outra modalidade de transporte que já vinha ­ganhando importância havia anos e disparou em popularidade por ­causa da pandemia são as bicicletas. A prefeita de Paris, Anne ­Hidalgo, anunciou no final de janeiro que a cidade eliminaria 72% das vagas de estacionamento nas ruas para abrir ­espaço para os ciclistas. Mais de 600 quilômetros de ­ciclofaixas temporárias e permanentes estão previstos, e o plano foi acelerado por causa do coronavírus. Quando as medidas de ­isolamento foram relaxadas, em meados de maio, a Rue de Rivoli, uma artéria que cruza a cidade de leste a oeste, estava fechada para os carros. O objetivo da prefeitura é que todas as ruas parisienses sejam tão acolhedoras para pedestres e ­ciclistas quanto para automóveis.

Ciclistas trafegam próximos a clientes em mesas de restaurante que avançam sobre a pista em rua de Manhattan: adaptação dos espaços para manter o distanciamento social | Noam Galai/Getty ImagesReprodução/

Nunca se venderam tantas bikes como nos últimos meses. Em Nova York, as lojas têm filas, e vários modelos estão em falta. O fenômeno também se observa no Brasil. “As vendas aumentaram 30% em junho em comparação com o ano passado”, afirma Cyro Gazola, presidente da Dorel Sports do Brasil, responsável por marcas como Caloi e Cannondale. Mas as iniciativas das grandes cidades brasileiras ainda estão aquém do que se vê na Europa ou mesmo em paí­ses sul-americanos, como a Colômbia (país que adotou o ciclismo profissional como um de seus esportes nacionais depois que um colombiano venceu a Volta da França, no ano passado). “Sem a ajuda do poder público, fica ­difícil”, diz Gazola.

Glaeser, de Harvard, aponta outra potencial mudança positiva: as grandes cidades podem ficar mais acessíveis. Os aluguéis em Nova York continuam entre os mais altos do mundo: o valor médio em Manhattan foi de quase 3.400 dólares por mês em junho, segundo um levantamento da corretora Douglas Elliman. Mas isso representa uma ­queda de 4,7% e um retorno a valores de dois anos atrás. O número de unidades anunciadas também saltou 85% em relação ao ano passado. “Há uma oportunidade única para as cidades lidarem com as desigualdades urbanas e oferecerem oportunidades para todos, não só para os mais ricos”, diz Glaeser. O distrito eleitoral mais pobre do país fica no Bronx, a alguns minutos de metrô de Manhattan.

Clientes são atendidos fora do bar Stonewall Inn, em West Village: novos hábitos com a pandemia | Noam Galai/Getty ImagesReprodução/

O setor de serviços também deve passar por uma mudança profunda. O “apocalipse do varejo” de que se fala há anos parece ter chegado para valer. Um relatório do banco UBS estima que 100.000 lojas físicas poderão fechar as portas nos Estados Unidos nos próximos cinco anos. Essa conta inclui não só redes grandes mas também lojinhas de conveniência e restaurantes de bairro. É difícil calcular o impacto econômico e social dessa devastação. O economista Enrico Moretti, da Universidade de Berkeley, calcula que cada emprego de alto nível — em um banco ou numa empresa de tecnologia, por exemplo — sustente cinco no setor de serviços. Se essas pessoas não vão aos escritórios, não compram café nem almoçam na rua. “Um quinto da força de trabalho americana, ou 32 milhões de pessoas, é empregado pelos setores de lazer, hospitalidade e varejo”, diz Glaeser. “São empregos que existem por causa do valor dessas interações cara a cara.”

“Ruas que eram cheias de vida estão mortas. Lojas e negócios fechados, vitrines cobertas por tapumes”, diz Adriana Alba, que trabalha numa organização sem fins lucrativos que ajuda crianças de baixa renda. Nos últimos quatro meses, ela mal saiu de seu apartamento, no Brooklyn. Por enquanto não há planos de voltar ao escritório. “Todo mundo quer ver de novo aquela cidade vibrante que conhecemos, mas ainda temos de superar muitos obstáculos.”


“ELAS VOLTAM MAIS FORTES”

As supercidades vão sair bem da pandemia e aumentar sua dominação, segundo o professor americano Richard Florida | Sérgio Teixeira Jr., de Nova York

Richard Florida: ”Será uma vergonha se não aproveitarmos este momento para melhorar ainda mais as cidades” | DivulgaçãoReprodução/

Para o pesquisador Richard Florida, estão fazendo muito barulho por nada. O professor americano, que leciona na escola de administração da Universidade de Toronto, é um dos mais influentes estudiosos dos centros urbanos. Em sua opinião, as grandes cidades já passaram por crises muito graves e sempre voltaram ainda mais fortes. Mas a pandemia é uma oportunidade única de tratar de problemas crônicos, como desigualdade econômica — se houver vontade política dos governantes, é claro.

Muita gente deixou Nova York na pandemia e não pretende voltar, já que pode trabalhar de casa. O mesmo aconteceu em outras metrópoles. Será um divisor de águas para grandes cidades com enorme população de trabalhadores do conhecimento?
Não estou nem um pouco preocupado com Nova York. A cidade sobreviveu a coisas muito graves: cólera, gripe espanhola, ataques terroristas de 11 de setembro, crise financeira de 2008, furacão Sandy. Em todos esses casos, escreveram o obituário da cidade, e ela sempre voltou mais forte. A pandemia e suas consequências econômicas, sociais e civis farão muita gente se mudar para o subúrbio. O trabalho remoto vai reforçar essa tendência. Mas quem vai se mudar são as famílias com crianças, os idosos e os vulneráveis. Os jovens vão continuar inundando as cidades. Cidades superstar, como Nova York, Londres e até mesmo São Francisco, sairão bem da pandemia. Eu me preocupo com as cidades menores, como Houston e Phoenix. Se quer uma previsão, eu diria que as supercidades vão aumentar sua dominação à custa das menores.

Que tipo de mudanças mais duradouras podemos esperar? 
Acredito que as cidades não mudarão tanto assim. O “jeitão” será o mesmo. Por um tempo as pessoas usarão máscaras, veremos mesas nas calçadas, filas para entrar em lojas. Mas, no longo prazo, as maiores mudanças serão aquelas sempre causadas pelas pandemias. Haverá mais parques, atualizações da infraestrutura. As cidades ficarão mais limpas e haverá ênfase em saneamento.

E quanto aos espaços públicos e ao transporte? 
Algumas grandes cidades, como Londres e Paris, estão aproveitando esta oportunidade para criar mais espaço para bicicletas, por exemplo. Acho que as ciclovias são uma das poucas grandes mudanças duradouras que veremos nas cidades. Mas isso já estava acontecendo antes. A pandemia simplesmente vai acelerar esse processo. Seria ótimo se pudéssemos reconfigurar nossas cidades de modo que não tivessem mais um único distrito comercial central atraindo gente de longe. O ideal seria haver vários centros espalhados, onde as pessoas pudessem morar, se divertir e trabalhar. Talvez, porque as pessoas estarão trabalhando em casa, possa haver uma retração no mercado imobiliário comercial — que seria convertido em espaços residenciais. E os shoppings falidos dos subúrbios poderiam ser transformados em escritórios. Seria ótimo se isso acontecesse.

Os últimos 25 anos viram uma transformação enorme em Nova York. A cidade ficou mais segura, mais limpa, mais atraente. Mas também mais desigual e cada vez menos acessível às classes média e baixa. A crise atual é uma chance de atacar esse problema?
Sim. Sem intervenção pública para enfrentar a desigualdade racial e econômica, as cidades ficarão mais desiguais. Vai aumentar a distância entre as pessoas que vivem em áreas que concentram privilégios e as que moram em bairros mais pobres. A onda de protestos por justiça racial e social é uma oportunidade para começarmos a lidar com esses problemas. Mas isso depende da ação dos políticos. Espero que tiremos proveito deste momento para criar cidades mais inclusivas, igualitárias, justas, seguras, inovadoras e resilientes. As cidades são a maior conquista da humanidade. Mas podemos melhorá-las ainda mais. Será uma vergonha se não aproveitarmos este momento para isso.

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Fonte: Revista Exame

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