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Rondônia, sexta, 29 de março de 2024.

Exame

Sakai, da Transparência Brasil: o presidente não pode interferir na PF


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Ao anunciar seu pedido de demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública nesta sexta-feira, 24, o ex-juiz Sergio Moro acusou o presidente Jair Bolsonaro de querer maior interferência na Polícia Federal. O estopim da crise foi a exoneração, nesta madrugada, do chefe da PF, Maurício Valeixo, indicado por Moro. “O presidente queria alguém [na PF] a quem pudesse ligar, colher informações”, disse Moro no anúncio de sua saída. Órgão responsável pela investigação de crimes federais, a PF fica sob responsabilidade do Poder Executivo, mas deve ter atuação independente para investigar crimes — o tipo de investigação que resultou na Operação Lava-Jato.

Especialista no estudo de mecanismos de combate à corrupção, Juliana Sakai, diretora de operações da Transparência Brasil e mestre em ciência política pela Leuphana Universität, na Alemanha, afirma que este tipo de atitude, se confirmada, vai contra preceitos anticorrupção básicos empregados em países desenvolvidos. Sakai diz ainda que o caso pode prejudicar a imagem do Brasil no exterior e a entrada do país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sobretudo em um momento em que os esforços deveriam estar centrados no combate ao coronavírus. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

O ex-ministro Sergio Moro, antes de anunciar seu pedido de demissão, disse que o presidente Jair Bolsonaro queria alguém para quem “pudesse ligar” na Polícia Federal. Na teoria, o presidente da República está hierarquicamente acima da PF. Por que esse tipo de ligação e contato configuraria então um problema?

Em um estado democrático, nenhum agente pode ter um poder absoluto sobre tudo, nem mesmo o presidente da República. Ainda que um órgão de controle como a Polícia Federal faça parte da estrutura do Estado, a instituição precisa ter algum nível de independência para cumprir seu papel. O presidente não pode interferir na PF para atender interesses pessoais. Se tenta fazer isso, na prática está enfraquecendo esse órgão e fazendo com que deixe de cumprir a finalidade para o qual foi criado – no caso da PF, o controle de crimes federais, a investigação, incluindo de políticos. E à medida em que um órgão de controle é fraco, esse agente político, no caso o presidente, poderia fazer o que quisesse – mesmo que sejam condutas criminosas ou que configurem improbidade contra o interesse da administração pública. A democracia fica enfraquecida desta forma e há mais espaço para corrupção.

Na prática, que tipo de potenciais ataques à Polícia Federal existem nessa fala do ministro Moro?

Por essa fala, o questionamento que fica é que, se existem investigações nas quais o presidente da República quer, de certa forma, “intervir”, isso gera ainda mais suspeitas sobre o que é que se está querendo esconder; onde é que o presidente tem interesse. Você tem aí, então, uma suspeita de conduta criminosa.

É, novamente, uma diminuição e enfraquecimento de um órgão de controle importante, que é uma ferramenta da democracia. A Polícia Federal tem algumas atribuições específicas que só ela pode investigar. Na comparação com a Política Militar, por exemplo, a PF investiga crimes federais como o crime organizado, quando envolve algum desvio de recurso federal, por exemplo. E ela está sob o comando do Ministério da Justiça, até então, de Moro. É um órgão que faz parte do Executivo, mas tem níveis de hierarquia. É um braço de investigação para defender o país de diversos tipos de crime, como foi até na Lava-Jato.

O que a saída de Moro representa para o Brasil e para o governo no combate à corrupção?

Com sua saída, vai embora um pouco do que restava desta imagem “anticorrupção” que o governo Bolsonaro construiu. Isso degrada ainda mais a imagem do governo. Não necessariamente o discurso anticorrupção se mostrava totalmente na prática, mas, agora, mesmo em termos de imagem, o governo perde aliados no seu núcleo central, que é essa bandeira anticorrupção. O Moro veio para enaltecer essa aura de combate à corrupção porque foi alguém que esteve ali conduzindo a Lava-Jato por tantos anos, virou herói para muita gente e também respeitado dentro de alguns órgãos especializados. Alguém cujo papel como juiz foi importante no desenvolvimento de uma série de acontecimentos no país — que foram políticos, mas que também avançaram na investigação de esquemas de corrupção. E, para o que fica, é esta dúvida grave sobre o que se tem a esconder. Foi um ministro colocando em praça pública que havia tentativa de interferência em um órgão que deveria ser independente.

Moro chegou a citar hoje que, dentro dos governos petistas, havia corrupção, mas a PF era independente. Essa afirmação de maior independência da PF anteriormente faz sentido?

Os governos petistas ficaram no poder por muitos anos, então, naturalmente, houve neste período avanços de tecnologia, avanços em noções de transparência, a democracia em si foi evoluindo, independentemente do governo. Mas tivemos também bons níveis de independência, com o governo central de certa forma permitindo que essa evolução acontecesse. Entre 2003 e 2015 foram aprovados mecanismos de combate à corrupção e controle do poder público importantes, como a Lei Anticorrupção, a Lei de Acesso à Informação e a lista tríplice para tentar garantir independência na Procuradoria-Geral da República (PGR). São marcos institucionais no Brasil que foram inspirados em legislações de países desenvolvidos, como os da Europa. Mas foram avanços institucionais do Brasil que vieram a prejudicar o próprio partido no poder, o PT, porque o governo foi alvo depois de complexas investigações de corrupção feitas justamente por esses órgãos, que foram fortalecidos dentro do processo democrático. Contudo, são instituições que precisam seguir avançando sempre. Se um governo começar a enfraquecer essas instituições e tentar controlá-las, é um problema muito grave.

A Transparência Brasil atua na defesa do combate à corrupção e integridade no setor público e na transparência das ações do Estado para alcançar este fim. Como as organizações voltadas a esse tema estão enxergando as ações do governo Bolsonaro até agora?

Houve alguns episódios que foram questionados desde o início do mandato. Um exemplo foi a nomeação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, o primeiro fora da lista tríplice. Isso deu às organizações a impressão de que o governo queria somente um aliado no cargo – o que é um problema. O cargo de procurador-geral da República existe justamente para denunciar condutas impróprias do presidente e de ministros.

Houve também tentativas de restringir a Lei de Acesso a Informação (LAI) por parte da Controladoria Geral da União (CGU), outro órgão que é subordinado ao Executivo mas tem de atuar de forma a controlar o próprio governo proporcionando transparência pública. Agora na pandemia houve uma última Medida Provisória do governo Bolsonaro que suspendia todos os prazos de resposta a pedidos feitos via LAI e determinava que pedidos negados não teriam direito a recurso. Ela foi derrubada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Mas o ministro chefe da CGU [Wagner Rosário] ficou pessoalmente defendendo restrição da LAI com uma argumentação que não fazia sentido. A função do chefe da CGU é defender a transparência pública dentro dos limites da lei. Há servidores na CGU que se esforçam para manter os processos, mas a liderança facilmente cedeu ao governo.

A declaração de Moro hoje pode ter algum impacto maior para o Brasil internacionalmente?

O próprio governo Bolsonaro tem interesse em entrar na OCDE, por exemplo. Mas para isso precisa ter padrões internacionais de transparência, estar comprometido com o governo aberto. A transparência acabou ficando relacionada a pautas de esquerda, porque foi uma pauta trazida nos governos do PT. Mas qualquer país desenvolvido sabe que isso é uma política de Estado, que promove o fortalecimento democrático.

Fonte: Revista Exame

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