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Rondônia, quinta, 28 de março de 2024.

Exame

Urgência sim, sem esculhambação


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O governo precisa intervir com agilidade e vigor em uma crise profunda como a que se instalou. Isso é consenso. Para ter certeza, basta ver a opinião de quem, em situações normais, tende a preferir o cinto apertado – são chamados carinhosamente de “fiscalistas”. A visão dos que usualmente acham que austeridade é bobagem é menos reveladora, pois para eles o Estado tem que ser gigante de qualquer forma. Quando a maioria veste o boné keynesiano, seria ótimo se as vozes “progressistas” mais razoáveis contribuíssem para dar uma balanceada, chamando atenção para os perigos de errar na dosagem dos estímulos. No Brasil, é bom esperar sentado.

Não há como resolver positivamente a discussão sobre o ponto ideal de interferência do governo sobre a economia, com ou sem crise. Mas dá para tratar questões normativas com razoabilidade. Os mais humildes tendem a reconhecer a existência de falhas de mercado e de governo e intuem que, às vezes, é preciso ir mais para um lado, às vezes mais para o outro. Essa moçada acredita em um sistema em que o Estado, além de fiador das regras do jogo, atue para reduzir desigualdades e proteger os menos favorecidos, sem tirar competitividade e sufocar o espírito empreendedor. Na prática é meia boca? É. Mas há alternativa?

No mundo das tretas de WhatsApp, Twitter e Facebook, onde há experts em abundância e poucas dúvidas, não existe o meio do caminho. Há os de esquerda e os de direita, seja lá o que isso for. Outro dia descobri que o Estadão é um jornal comunista. Nessa selva, é pecado admitir virtudes em argumentos contrários, seja qual for o assunto – na verdade, não se perde tempo tentando ver o outro lado. Prevalece a “Lei de Godwin”, segundo a qual, no desenrolar de uma controvérsia, se ela durar bastante tempo, a probabilidade do surgimento de uma menção a Adolf Hitler tende a 100%. Versão adaptada aos novos tempos do “argumentum ad Hitlerum” de Leo Strauss.

Quando o tema é a disciplina fiscal no Brasil, as conversas costumam desandar antes de menções ao chanceler alemão. A vaca vai para o brejo quando alguém fala em “austericídio”, de um lado, ou “parasitas e vagabundos”, do outro. É lamentável que seja assim porque uma situação que já era dramática antes do vírus, corre o risco de se tornar insustentável agora. A parte fácil é dizer que o momento é de gastar. A difícil é levar em conta a nossa realidade, muito diferente da de nações desenvolvidas. Alguém com credibilidade precisaria lembrar que os recursos não deixaram de ser escassos e esse alguém não pode ser “fiscalista”.

Pois bem. No dia 14 o ex-ministro Nelson Barbosa defendeu no blog do IBRE ideias para enfrentar a crise fiscal dos Estados e Municípios (E&M). As propostas soam razoáveis, não tenho certeza e não é meu objetivo comentá-las. A parte decepcionante, a meu ver, é o pano de fundo. O ranço. Dentre os economistas menos ortodoxos, ele poderia chamar atenção ao fato de que cabras são necessárias para se vender cabritos. Poderia ser um porta voz da temperança, mas não foi.

Expôs o problema de forma didática. E&M têm despesas incomprimíveis e experimentam quedas de receitas dramáticas. Como não podem se endividar, precisam de ajuda do governo federal. A proposta da equipe econômica soma R$ 88,2 bilhões, dos quais 30% em dinheiro a fundo perdido e o resto em empréstimos ou afins, pois a ideia é dar o selo da viúva a quem não tem histórico de pagamento lisonjeiro. Como quando tudo dá errado, os papagaios dos entes subnacionais caem sobre as costas da União, há um claro problema de incentivos. No passado recente, a orgia de alguns Estados foi surreal. Nesse contexto, o governo federal sugeriu condicionar a aprovação da ajuda a medidas que fazem parte do chamado “Plano Mansueto”, visando a alinhar melhor os incentivos aos interesses da maioria no futuro.

O ex-ministro não gosta porque não resolve a situação de Estados falidos como RJ, MG e RS. Ele também denuncia a aposta “no poder mágico de privatizações para levantar recursos suficientes para abatimento da dívida”. Além disso, não se “prevê explicitamente refinanciamento em condições mais favoráveis” para quem atender às condições. Para ele, “uma solução mais crível deveria incluir reestruturação de dívidas e perdão do principal em troca de, por exemplo, redução do gasto com pessoal”. Admite que daria para remendar, mas que “agora a prioridade é outra”.

Não se trata de negar a crise gigantesca, urgente. Não dá mesmo para perder tempo. Minha dificuldade é entender por que não é possível atacar as duas frentes? Para o ex-ministro, seria a hora de suspender o serviço de dívidas até junho de 2021, garantir um valor mínimo de repasses por dois anos, transferir ao menos R$ 30 bilhões para saúde, assistência social e segurança e dar empréstimos para pagamento de servidores se tudo o que veio antes não tiver dado conta do recado. Pode ser que tenha que ir por aí mesmo, beleza. Mas não dá para pôr no bolo princípios que se tivessem sido respeitados no passado, teriam possibilitado enfrentar essa crise com menos fragilidades? Avanços importantes que só ocorrem em crises?

Muitas, para não dizer todas, as condicionalidades do Plano Mansueto soam razoáveis, ao menos para a Dona Maria do Jaçanã. Por exemplo, pedir a redução de incentivos e impedir que novos sejam dados. Retirar privilégios (!) maiores do que as benesses concedidas pelo governo federal. Eliminar vinculações orçamentárias que não sejam exigidas pela Constituição. Por que tanta resistência a coisas que parecem quase óbvias? É muito pedir a adoção de princípios básicos de governança e transparência? Que a folha de salários acompanhe a inflação? Sei lá.

Resolvam-se as questões urgentes, mas o momento é excelente para também passar a limpo alguns dos defeitos que nos colocaram na beira do precipício. Não custa lembrar que a situação fiscal deplorável dos Estados mencionados pelo ex-ministro não surgiu por obra do capeta. No dia em que a ficha da pandemia começava a cair no mundo, as manchetes aqui tratavam de aumentos salariais surreais em MG. Do outro lado, muitos adoram sentar o reio no PSDB, às vezes com razão. Mas não é à toa que a situação fiscal de São Paulo seja relativamente mais sólida. Abrir o cofre e esperar que os ajustes sejam feitos após a poeira baixar é um delírio.

O ex-ministro debocha dos que acreditam no poder mágico das privatizações. Ele tem razão, há essas pessoas. Assim como há também os que simplesmente não acreditam. Para a alegria geral, no entanto, há também gente inteligente, capaz de ver vantagens e desvantagens e analisar os casos de acordo com os contextos específicos. É triste ver um economista gabaritado contribuir desnecessariamente para o FEBEAPA com a ideia tosca de que “privatizações” seriam uma geleia homogênea a dividir o mundo entre os contra e os a favor. Ruídos desse quilate, e há outros na peça, prejudicam a credibilidade de um texto que pretende ser técnico.

Por fim, o momento parece propício também para considerar um detalhe importante da triste realidade. É verdade que despesas públicas são incomprimíveis, notadamente os salários de funcionários públicos. Mexer nesse vespeiro seria impossível em uma situação de normalidade, mas diante da pior crise econômica após a Segunda Guerra será que não se abriu uma ótima oportunidade para iniciar a conversa? Até as pedras sabem das desigualdades absurdas entre funcionários públicos e privados, sobretudo a favor dos da elite do primeiro grupo, não apenas no nível salarial. É justo que em uma situação excepcional, como se estivéssemos sendo invadidos por alienígenas, todo mundo se lasque, perca o emprego, tenha a renda reduzida, empresas bem geridas quebrem, tudo se esfarele e uma camada da sociedade saia praticamente ilesa enquanto a conta é socializada? A situação não é de “guerra”? Ok. Protejam-se as remunerações dos funcionários que ganham menos, pode ser justo. Mas da elite não.

Ao contrário do que propõe o ex-ministro, a urgência da situação exige que todas as distorções sejam tratadas. Não se pode perder tempo, nem pôr tudo a perder.

Fonte: Revista Exame

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