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Rondônia, quinta, 28 de março de 2024.

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MEMÓRIAS ATEMORIZANTES


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Memorias - Dr. Samuel Castiel

Samuel Castiel

Com a boca aberta no seu limite, escancarada, os dedos da dentista entre meus dentes impedindo o fechamento involuntário da boca e a mordida indesejável, estava eu ali, postado quase deitado, com um foco de luz no meu rosto. Com aqueles óculos escuros,mais parecia um ET que estivesse sendo submetido a uma necropsia. Primeiro a agulha torta e a injeção de anestésico na gengiva. A broca começou a corroer meu dente em alta rotação e pude sentir um odor de osso queimado. A broca liberando um jato de vapor d’água que a auxiliar ia sugando com um aspirador. Senti um choque que me fez pular na cadeira.

É a raiz exposta — explicou a dentista. Mais anestésico! Um quadro perfeito para um frouxo desmaiar! Não eu!… Pelo contrário, minha mente começou a reviver tempos idos, onde não tínhamos nenhuma nova tecnologia, nenhum profissional qualificado. Lembrei-me então de meus pais levando-me ao único dentista existente na cidade: Dr. Pedrinho Tatu era o nome do profissional, que na realidade era um protético, fiquei sabendo depois. Para completar, ele era alcólatra e sofria do mal de Parkinson. Suas mãos tremiam tanto que, ao tentar anestesiar um dente, anestesiava o outro. A dor de um dente arrancado sem a devida anestesia era uma tortura, uma tourada! Dizem os exagerados que muitas vezes arrancava o dente errado!… Mas, felizmente, isso nunca aconteceu comigo!

Havia um outro dentista que também  massacrava seus pacientes. Passava cerca de 2 horas no mínimo  com cada um, trancado em seu gabinete, apesar da sala de espera estar lotada. Certo dia, já intrigado com aquela situação, muita gente esperando para entrar e o último paciente já tendo saído fazia tempo. Escalei então  a janela que dava para a rua, e olhei para dentro da sala do dentista. O que vi deixou-me chocado e enraivecido: ele estava sentado na sua poltrona com um jornal na mão, porém dormindo profundamente, o óculos caído em seu peito e pendurado no pescoço por um barbante. Era patético, tragicômico para um  adolescente querendo voltar logo  pra casa para aproveitar o resto do dia com seus folguedos!

Lembrei-me também de outras memórias atemorizantes, quando nossa mãe, tentando nos trazer sua prole para dentro de casa, avisava aos gritos que saíssemos rápido da rua,
pois estaria passando ali, naquele exato momento, o “papa-figo” que era um morador de
rua, sequestrador de crianças para comer o fígado, na tentativa de curar-se de uma terrível
doença. Era uma corrida geral, não ficava ninguém na rua!

Outro morador de rua assustador era o “Macaco”, um pedinte que andava com roupas sujas e  esfarrapadas e um saco de sarrapilha nas costas. Quando o avistávamos, todos corriam. Os mais  afoitos o chamavam de “Macaco” o que o deixava enfurecido. Certo dia, os moleques da rua de casa o perseguiram chamando-o pelo apelido até que ele infartou e caiu morto! Uma tragédia!

Os tempos foram se passando e, até hoje,  os temores ainda povoam nossas
memórias.  Quando chega o novembro azul, imagino o consultório médico lotado de prostáticos e o médico chamando: —-Quem é o próximo?
Ninguém se habilita. Um olhando para o outro e para as mãos do médico:
— Pode entrar amigo. Cedo-lhe a minha vez! Não estou com pressa mesmo!…

Acho que muitos medrosos dessa época deveriam deitar-se no divã de um psicanalista
para encontrar e curar o fantasma de seus medos. Talvez a explicação esteja nessas reminiscências atemorizantes da adolescência.

Nisso fui despertado de minhas memórias de um passado distante:
—Acorde doutor! Acho que o anestésico botou o senhor pra dormir! — disse a dentista. Já
acabei de fazer os seus canais. Vai precisar voltar mais vezes ainda, pois teremos que tratar outros dentes.

Levantei-me um tanto embaraçado e disse-lhe sem querer: ainda bem que a senhora
não sofre do mal de Parkinson e nem gosta de ler jornal no consultório, doutora!… Ela olhou-me com um olhar de interrogação.

Acho que não entendeu nada!

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